PLANETA.doc
O Festival do Planeta.

Multiplicam-se em todo o mundo os programas de inovação tecnológica para a promoção da sustentabilidade. Soluções são geradas em segmentos econômicos diversificados, com avanços em energias renováveis, biotecnologia, agricultura de baixo carbono, materiais biodegradáveis, mobilidade urbana, construções, reciclagem e nos processos industriais em geral. Cresce ininterruptamente o conhecimento científico e interdisciplinar sobre o funcionamento da Terra como sistema vivo e os movimentos sociais vinculados à ecologia, que compreendem os recursos naturais como bens coletivos, cujos modos de apropriação e gestão devem ser objeto de debate público e de controle social. Este conjunto intrincado de experiências – de caráter tecnológico, científico e social – constitui um novo amálgama através do qual se projetam as sociedades do futuro, mais avançadas tecnologicamente e mais inclusivas.

Nossa missão como Festival de cinema socioambiental é mostrar por meio de filmes as práticas que estão sendo geradas internacionalmente para a promoção da sustentabilidade, com foco nas inovações que incidam positivamente na preservação e na melhoria da qualidade de vida do planeta. Queremos dar visibilidade ao conhecimento científico, mas também ao ancestral, evidenciando o funcionamento da Terra como um sistema vivo, ao qual irremediavelmente pertencemos. O objetivo final é promover uma ampla reflexão sobre nossa sociedade contemporânea, possibilitar a difusão de paradigmas de desenvolvimento que já vem sendo testados em nível comunitário e o desabrochar de novas matrizes culturais.

Consideramos que é preciso mudar o olhar para permitir a transformação das práticas instituídas no processo de industrialização. Ao utilizar uma matriz energética baseada no carbono, estamos produzindo mudanças climáticas em nível global, com o aumento de temperaturas, chuvas e fortes secas em várias partes do planeta. Criamos zonas de sacrifício ambiental para as quais se vertem todos os rejeitos da humanidade, com graves impactos para as populações marginalizadas que habitam estes locais insalubres e para as espécies de animais e vegetais que são extintas no processo. Sacrificamos florestas, o ar, a água e os animais em um sistema irracional de satisfação de necessidades, que avassala nossos substratos de vida. Esquecemos que os ecossistemas terrestres (desertos, florestas e pradarias), aquáticos (rios, mares, manguezais e pântanos) e sociais são parte de um macro ecossistema que se retroalimenta, profundamente conectado e interdependente, onde o equilíbrio é chave.

O cinema pode cumprir um papel importante na re-significação do mundo, promover a educação socioambiental em escolas e universidades, além de disseminar ideias, soluções e práticas que permitam municiar as pessoas com exemplos de experiências concretas de sustentabilidade. Mas seu poder maior é, sem dúvida, o de nos envolver em suas histórias – e emocionar. O cinema afeta o nosso sentir, a nossa vontade – e sem ela não faremos nada.

Neste projeto cultural, unimos a reflexão e a ação, ancoradas na emoção profunda que proporciona o cinema ao nos re-conectar com a Terra. E com este arco apontamos a flecha.

Mônica Linhares

Jornalista e documentarista, é diretora geral do Planeta.Doc., Mestre em Desenvolvimento Econômico da América Latina pela Universidade Internacional de Andaluzia (UNIA), Mestre em Relações Internacionais  e Doutoranda em Comunicação, Transformação Social e Desenvolvimento pela Universidade Complutense de Madrid (UCM).

O Mito do Desenvolvimento Econômico

“A visão do mundo e das sociedades que transparece na ideologia do Progresso é um modelo para o pensamento, para a organização e para a ação social. Por isso, transformou as crenças (religiosas, éticas, jurídicas); e serviu para reorganizar as instituições e as organizações (educativas, profissionais, científicas); ao mesmo tempo em que mobilizou as ações sociais (explorações geográficas, investimentos de capital, guerras coloniais relacionadas com a apropriação dos recursos naturais).

Há 250 anos os enciclopedistas enunciaram essa concepção de progresso. E transcorreram-se quase 200 anos desde que Augusto Comte e Saint Simon a transformaram em “ciência social” (Martín Serrano, 1976). Outros tantos anos se passaram desde que Ricardo e Marx mostraram que essa representação é específica do funcionamento econômico do Capitalismo (Martín Serrano, 1981 e 1986: 500-518). No entanto, o empenho de apropriar-se dos recursos naturais para explorá-los segundo o desígnio humano está muito longe de ser abandonado. E em todo caso, a comunicação pública, nas nossas sociedades e no nosso tempo vincula o desenvolvimento humano à substituição da Natureza”.

(Manuel Martín Serrano, 2008)

Em seus ensaios escritos em 1974 compreendidos no livro “Mito do Desenvolvimento Econômico”, Celso Furtado já advertia sobre o impacto do estudo Os limites do crescimento sobre a possibilidade de generalização a todo o mundo, do nível de consumo dos países considerados desenvolvidos. A impossibilidade de estender estes níveis de consumo ao mundo todo sob pena de colapso total do sistema, demonstraria cabalmente o que ele denominou “a estrutura mítica do conceito de desenvolvimento econômico”. O economista brasileiro grande expoente da teoria da dependência, chamou a atenção para esta prolongação do “mito do progresso”, elemento essencial na ideologia da revolução burguesa dentro da qual se criou a atual sociedade industrial.

Nas palavras de Furtado:

“A literatura sobre o desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos 90% do que aí encontramos se funda na ideia que se dá por evidente, segundo a qual o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente: pretende-se que o Standard  de consumo da minoria da humanidade, que atualmente vive nos países altamente industrializados, é acessível às grandes massas de população em rápida expansão que formam o chamado Terceiro Mundo. (Furtado, 1974, p. 14)

Esta ideia diretora teria orientado o olhar dos economistas a conceber complexos processos de acumulação de capital e subestimar o impacto, no plano cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital e das consequências, no meio físico, de um “sistema de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados” (Furtado, 1974, p14).

O impacto do estudo The limits to growth, preparado por um grupo interdisciplinar, no MIT, para o chamado Clube de Roma trouxe ao primeiro plano um conjunto de questões que normalmente eram deixadas na sombra pelos economistas. O estudo disponibilizou dados que permitiam avaliar a estrutura e as tendências do sistema econômico planetário. Os modelos representativos da estrutura e funcionamento do conjunto de atividades econômicas puseram em evidência, já naqueles anos, a crescente dependência da economia norte-americana de recursos não renováveis produzidos no exterior do país.[1] Em Janeiro de 2011, o portal Wikileaks divulgou os locais do mundo que são alvo de exploração estratégica de matérias primas e suas respectivas infraestruturas de subministro, sem as quais EUA entraria em colapso. O fato foi amplamente criticado pela diplomacia norte-americana, que se justificou alegando a exposição da grande potência a possíveis ataques terroristas.

O que interessa assinalar é que a carência de recursos estaria no cerne da política de crescente abertura da economia dos Estados Unidos e de reforçamento das grandes empresas capazes de promover a exploração dos recursos naturais a escala planetária, baseando-se na premissa de que as fronteira externa do sistema é ilimitada. A importância do estudo “Os limites do crescimento” foi revelar que a universalização do padrão de desenvolvimento[2] levaria a uma pressão tão grande sobre os recursos não renováveis e a um custo do controle de poluição tão elevado que o sistema econômico mundial entraria em colapso. Este estudo foi fundamental para a construção posterior, nas décadas subsequentes, do conceito de desenvolvimento sustentável.

A conclusão geral que surge do estudo é que a hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema. “Esta hipótese está em contradição direta com a orientação geral do desenvolvimento que se realiza atualmente no conjunto do sistema, da qual resulta a exclusão das grandes massas que vivem nos países periféricos das benesses criadas por este desenvolvimento. Ora, são exatamente esses excluídos que formam a massa demográfica em rápida expansão”. (Furtado, 1974, p70)

(…)E é essa a razão fundamental pela qual uma ruptura cataclísmica, num horizonte previsível, carece de fundamento. O interesse principal do modelo que leva a essa ruptura cataclísmica está em que ele proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo, em termos de depredação do mundo físico, é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. Temos assim, a prova definitiva de que o desenvolvimento econômico – a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas como negar que esta ideia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidadede destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? Cabe por tanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento. A importância principal do modelo de The limits to growth é haver contribuído, ainda que não haja sido o seu propósito, para destruir esse mito, seguramente um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos dentro da nova estrutura do sistema capitalista” (Furtado, 1974, p75).

Furtado já advertia em 1970 a proeminência das grandes empresas sob os “sistemas econômicos nacionais”, prevendo a migraçao destas para a periferia do sistema para aproveitar a mao de obra barata e acesso a recursos naturais.

“Em síntese: se está configurando uma situação que permita à grande empresa utilizar técnica e capitais do centro e mão de obra (e capital) da periferia, aumentando consideravelmente o seu poder de manobra, o que reforça a tendência já anteriormente referida à “internacionalizaçao” das atividades econômicas dentro do sistema capitalista”. (Furtado, 1974, p50)

A verdade é que a grande empresa tem como diretriz máxima expandir-se e para isso ela tende a ocupar posições nas distintas áreas do sistema capitalista. Os países do centro do sistema constituem, de muito, as áreas mais importantes, razão pela qual o esforço tecnológico está principalmente orientado para atuar nesses países. Os planos de produção nos países periféricos estão condicionados por essa orientação tecnológica e os mercados internos desses países são moldados à conveniência da ação global da empresa” (Furtado, 1974, pagina 54).

Furtado sublinha a importância crucial dos recursos naturais para as economias latino-americanas. Para utilizar estes recursos sem expropriar os povos que nele habitam esgotar a capacidade de regeneração e o equilíbrio ecológico, é necessária uma profunda reflexão sobre quais necessidades e as de quem estão sendo atendidas com a exploração destes recursos.

Mônica Linhares (2009)

[1] Segundo o Departamento do Interior do Governo dos Estados Unidos em 1972, dos treze minerais de que depende a economia desse país para funcionar, todos com uma exceçao (os fosfatos) deverao ser abastecidos em mais da metade por fontes externas antes do fim do século XX).

[2] Furtado analisa dois tipos de pressão sobre os recursos naturais, a primeira, ligada a idéia de freio maltusiano refere-se a disponibilidade de terra arável a ser utilizada no contexto da agricultura de subsistência, que poderia provocar calamidades localizadas como a do Sahel africano, mas que não afetaria o conjunto do sistema. O segundo tipo de pressão seria advindo dos efeitos diretos e indiretos da elevação do nível de consumo das populações e sua pressão seria tanto maior quanto  mais concentrada a renda nos países de mais alto nível de vida.  Furtado adverte que “se fosse mais bem distribuído no conjunto do sistema capitalista, o crescimento dependeria menos da introdução de novos produtos finais e mais da difusão do uso de produtos já conhecidos, o que significaria um mais baixo coeficiente de desperdício. A capitalização tende a ser tanto mais intensa quanto mais o crescimento esteja orientado para a introdução de novos produtos finais, vale dizer, para o encurtamento da vida útil de bens já incorporados ao patrimônio das pessoas  e da coletividade.  O primeiro tipo de pressão seria localizado e criaria o seu próprio freio, enquanto o segundo é cumulativo e exerce pressão sobre o conjunto do sistema. Suas idéias rechaçam a hipótese de que os padrões de consumo dos paises ricos tenderiam a se generalizar em escala planetária.